Você já parou para pensar sobre o quão incrível é ter a Bíblia em sua própria língua? Para a maioria de nós, essa é a ferramenta básica para ler e estudar a Palavra de Deus. Mas, a Bíblia que lemos hoje foi originalmente escrita em línguas bem diferentes: a maior parte do Antigo Testamento em hebraico, algumas partes do Antigo Testamento (em Daniel e Esdras) em aramaico (uma língua irmã do hebraico), e todo o Novo Testamento em grego.
Como a maioria dos leitores não conhece essas línguas originais, a tradução não é apenas útil, é indispensável. O simples ato de ler a Bíblia, mesmo em sua língua materna, já nos envolve em interpretação. E é aí que a mágica (e o desafio!) acontece: para expressar os originais, os tradutores precisam fazer escolhas.
Mais do que Palavras: Por Que as Traduções Variam
Talvez você já tenha comparado diferentes versões da Bíblia e notado que a mesma passagem pode soar um pouco diferente. Por que isso ocorre? Não é que os tradutores queiram confundir! O problema está ligado às escolhas exegéticas específicas feitas por eles.
Veja o exemplo de Jeremias 17:6. Diferentes traduções traduzem um termo de formas variadas:
ARC: “Porque será como a tamargueira no deserto…” |
NIV: “Ele será como um arbusto no deserto…” |
NTLH: “Ele é como uma planta do deserto…” |
Percebe a diferença? Diferentes versões oferecem interpretações diferentes, mostrando que uma tradução pode refletir uma opção exegética (de interpretação do texto) que os tradutores consideram mais provável. No caso, a leitura na NVI reflete a melhor opção exegética neste ponto específico.
Este tipo de situação, onde a tradução de uma frase depende da interpretação do tradutor sobre o que o autor original (neste caso, Jeremias) realmente queria dizer, acontece centenas de vezes.
A Ciência por Trás da Tradução
A tradução da Bíblia não é um processo aleatório. Envolve duas grandes áreas de preocupação:
1. A Questão do Texto (Crítica Textual): A primeira preocupação do tradutor é ter o texto original o mais próximo possível daquele escrito pelo autor. O grande desafio é que não existem manuscritos “originais” (autógrafos) da Bíblia. O que temos são milhares de cópias feitas ao longo de séculos, e essas cópias variam entre si. A crítica textual é a ciência que estuda esses manuscritos para identificar as diferenças (“variantes”) e determinar qual é a leitura mais provável do texto original. É um trabalho complexo, que exige analisar todas as evidências disponíveis.
- A crítica textual considera evidência externa (a natureza e qualidade dos manuscritos, como sua idade e proveniência) e evidência interna (tipos de erros cometidos pelos copistas, tendências do autor). Geralmente, a combinação de ambas é considerada a melhor abordagem.
- A maioria das variantes em manuscritos são pequenas, como erros de ortografia ou repetições. Mas algumas são significativas e afetam o sentido.
- Exemplos de questões de crítica textual que os tradutores enfrentam incluem a leitura de Marcos 1:2 (“escrito nos profetas” ou “escrito no profeta Isaías”) ou a inclusão da frase “pertencem a Deus” em 1 Coríntios 6:20, que parece uma adição posterior em alguns manuscritos6.
- Tradutores geralmente trabalham com edições críticas do texto, preparadas por especialistas, que analisam essas variantes. A crítica textual é uma ciência com regras rigorosas.
2. As Opções Linguísticas (Teoria da Tradução): Uma vez estabelecido o texto mais provável do original, o tradutor precisa transferir suas palavras e ideias para a língua de chegada (a nossa). Isso não é simples, pois as línguas têm estruturas e formas de pensar diferentes, e há uma distância histórica e cultural significativa. Existem diferentes abordagens para fazer essa transferência:
- Equivalência Formal (ou literal): Tenta manter a forma do original o mais próximo possível, palavra por palavra, estrutura gramatical por estrutura gramatical. Pode resultar em um texto menos fluente ou claro na língua de chegada. Exemplos incluem a ACF, LTT, e a Bíblia de Jerusalém.
- Equivalência Funcional (ou dinâmica): Tenta manter o significado ou a intenção do autor original, expressando-o de forma natural e compreensível na língua de chegada, mesmo que isso signifique mudar a estrutura das frases. Prioriza a clareza para o leitor moderno. Como exemplo desse tipo de tradução temos a NIV.
- Tradução Livre: Tenta parafrasear as ideias, com foco na fluidez e relevância na língua de chegada. Pode se afastar demais da forma e até do sentido original se não for cuidadosa. Um exemplo disso é a tradução A Mensagem, de Eugene Peterson.
Não há consenso absoluto sobre qual abordagem é a “melhor” em todos os casos. A teoria da equivalência funcional é considerada útil, pois foca em tornar o texto acessível. No entanto, uma tradução estritamente formal pode ser difícil de ler, e uma tradução muito livre pode perder nuances. A prática ideal provavelmente envolve um equilíbrio, e muitas boas traduções modernas combinam elementos de ambas as abordagens.
Áreas Problemáticas na Prática da Tradução
Além das diferentes teorias, os tradutores enfrentam dificuldades concretas com certos tipos de conteúdo:
- Pesos, Medidas, Dinheiro: Como traduzir termos como “efa”, “ômer”, “talento” ou “dênario”? Algumas traduções usam transliteração, outras usam equivalentes aproximados, outras usam sistemas métricos ou unidades modernas ou explicam em notas. A escolha afeta a clareza para o leitor.
- Eufemismos: A Bíblia usa eufemismos para tópicos delicados. O tradutor pode traduzir literalmente (arriscar ser obscuro ou ofensivo), ou usar um eufemismo equivalente na língua de chegada, ou remover o eufemismo para clareza (como a NIV faz com “tocar mulher” em 1 Coríntios 7:1, simplesmente traduzindo como “relação sexual”).
- Vocabulário Específico: Encontrar a palavra certa pode ser difícil quando um termo original tem múltiplos sentidos ou nuances. A palavra grega sarx, traduzida como “carne”, pode ter diferentes significados dependendo do contexto (corpo físico, natureza humana decaída). A NIV, por exemplo, traduz sarx em Gálatas 3:3 como “esforço próprio” para transmitir o sentido contextual.
- Jogos de Palavras: Puns ou conexões sonoras no hebraico ou grego são quase impossíveis de transferir para outra língua. Por exemplo, em Amós 8:1-2, há um jogo de palavras entre qayits (“cesta de frutas maduras”) e qets (“o fim”). Traduções literais mantêm as palavras, mas perdem o jogo; traduções funcionais tentam capturar o sentido, mas perdem a conexão sonora.
- Gramática e Sintaxe: Estruturas gramaticais de hebraico e grego são diferentes das nossas. O uso frequente da conjunção “e” (waw) no hebraico, por exemplo, soaria repetitivo em português. Traduções mais modernas (como a NIV) tendem a reduzir a ocorrência de “e” para melhorar a fluidez. Construções possessivas no grego, como em “cooperadores de Deus” (2 Coríntios 6:1), podem ser ambíguas (“cooperadores que pertencem a Deus” ou “cooperadores com Deus”?); a NIV 2011 escolhe uma tradução mais clara como “cooperadores de Deus”.
- Questões de Gênero: A Bíblia frequentemente usa termos masculinos para se referir a grupos mistos ou pessoas em geral. Traduções modernas tentam usar linguagem mais inclusiva, o que envolve escolhas como traduzir um termo masculino singular por um plural ou por um termo neutro. O desafio é fazer isso sem distorcer o sentido original ou a estrutura literária, como em Salmo 1:1, onde “Bem-aventurado o homem” (singular) pode ser traduzido de forma mais inclusiva como “Feliz é aquele” ou “Bem-aventurado a pessoa”. A NIV 2011 usa “Bem-aventurado aquele…”.
Escolhendo Sua Ferramenta(s)
Com tantas opções e desafios na tradução, como escolher a melhor Bíblia para ler e estudar? Ninguém pode dar uma resposta definitiva para todos. A sua escolha, e as várias traduções que você deve usar para estudo, não devem ser decididas “porque alguém gostou” ou “porque esta tradução é fácil de entender”.
A principal prática para um estudo aprofundado é usar várias traduções. Comparar diferentes versões ajuda a identificar os pontos onde as escolhas dos tradutores divergiram. Para resolver dúvidas em passagens difíceis, você pode precisar consultar um ou mais comentários.
É especialmente útil comparar traduções que seguem diferentes princípios de tradução. Comparar uma tradução mais literal/formal (como ARC) com uma mais dinâmica/funcional (como NIV) pode enriquecer muito a sua compreensão, mostrando diferentes facetas do texto original.
Sugerimos a NIV como uma excelente ferramenta para estudo, por ser uma tradução dinâmica produzida por uma comissão de eruditos. Outras boas opções mencionadas incluem a NAA e ACF.
É bom ter em mente que algumas traduções não discutidas (como a Tradução do Novo Mundo das Testemunhas de Jeová) são consideradas teologicamente tendenciosas e devem ser usadas com extrema cautela ou evitadas para estudo sério. A antiga King James, embora histórica e literária, usa uma linguagem que pode ser difícil para o leitor moderno.
Uma Jornada de Descoberta
Em resumo, a tradução da Bíblia é uma tarefa monumental e fascinante. É a ponte que nos conecta com os escritos antigos, permitindo que a Palavra de Deus fale em nossas vidas hoje. As diferenças entre as traduções refletem as complexidades dos textos originais, as dificuldades inerentes ao mover ideias entre línguas e culturas, e as diferentes abordagens que os tradutores escolhem.
Em vez de ver essas diferenças como um problema, podemos encará-las como um convite à exploração e ao aprofundamento. Usar múltiplas traduções é uma prática fundamental para quem busca entender a Bíblia com mais profundidade. Ao comparar como diferentes eruditos e comissões lidaram com os desafios do texto, ganhamos uma visão mais rica e completa.
Portanto, aprecie sua tradução principal, mas não hesite em consultar outras! Elas são ferramentas valiosas que, usadas em conjunto, podem iluminar o texto bíblico de maneiras surpreendentes. Que sua jornada na leitura e estudo da Bíblia seja sempre enriquecedora!