Dicas para Ler o Cântico dos Cânticos (A beleza do amor)

Vamos mergulhar em um dos livros mais singulares e, para muitos, desafiadores da Bíblia: o Cântico dos Cânticos. Longe de ser um texto obscuro ou apenas uma curiosidade literária, este livro poético oferece uma visão profunda e bela sobre um aspecto fundamental da vida humana e do desígnio divino. Preparar-se para lê-lo com a perspectiva correta pode abrir um mundo de significado e apreciação dessa porção da Palavra de Deus. Por isso, seguem algumas dicas e considerações para tornar sua leitura de Cântico dos Cânticos mais enriquecedora e edificante para você.

O Que é o Cântico dos Cânticos?

Para começar, é crucial entender a natureza deste livro. O Cântico dos Cânticos é descrito como um poema de amor. Mas não qualquer poema; ele celebra de forma notável o amor (sexual inclusive) entre um homem e uma mulher. O livro é bastante ímpar no cânon bíblico. Uma de suas características distintivas é a ausência de menção direta ao nome de Deus. No entanto, ele é parte da Palavra inspirada, o que por si só já nos diz muito sobre a importância do tema que ele aborda.

O texto é apresentado em uma poesia maravilhosa, repleta de imagens sugestivas e vívidas. Embora seja chamado de “Cântico dos Cânticos” (no singular), os dados de orientação indicam que ele deve ser lido como diversos episódios ou cenas de um poema maior. Não se trata de uma narrativa contínua e linear no sentido tradicional. Pense nele como uma série de quadros poéticos que, juntos, estão tentando criar um retrato – um retrato do amor.

As ênfases principais do livro são:

Assim, desde o início, somos convidados a ver este livro como uma celebração do amor – e da fidelidade matrimonial – dentro da estrutura divinamente planejada por Deus para seu povo.

Conselho Crucial para a Leitura: As Vozes

Uma das chaves para uma boa leitura de Cântico dos Cânticos é reconhecer que ele chega a nós basicamente em três vozes. Essa mudança constante de narrador pode tornar a estrutura inicial difícil de discernir, mas identificar quem está falando é fundamental. As vozes principais são:

Os títulos como “amado” (o homem), “amada” (a mulher) e “amigas” (as companhias da mulher) que aparecem em algumas traduções, como a NVI, são tentativas de ajudar o leitor a identificar quando há mudança de narrador. É útil saber que esses títulos não estão no texto hebraico original, mas servem como uma ferramenta para seguir as vozes ao longo do poema.

Além dessas vozes principais, há outras personagens que aparecem, mas basicamente como acessórios úteis para as cenas3. Estes incluem os pastores (1:7,8), as sentinelas da cidade (3:3; 5:7) e os irmãos da mulher (1:6; 8:8,9).

Portanto, ao ler, tente sempre perguntar: quem está falando nesta cena? É a mulher expressando seu anseio ou deleite? É o homem descrevendo a beleza de sua amada? São as filhas de Jerusalém respondendo ou fazendo perguntas? Isso ajudará a organizar as diferentes partes em sua mente e a apreciar a dinâmica das interações.

A Questão de Salomão: Uma Ambiguidade Importante

Um ponto que frequentemente surge ao ler Cântico dos Cânticos é o papel do Rei Salomão. O título no versículo 1:1 menciona “Cântico dos cânticos, de Salomão”. No entanto, os textos indicam que o mais difícil de determinar é precisamente qual é o papel de Salomão no poema.

Conquanto seja possível ler a passagem de 3:6-11 como uma sugestão de que o homem no poema seja o próprio Salomão e de que este parágrafo o apresente como o noivo, a fonte enfatiza que não é necessário manter essa visão para apreciar a mensagem de Cântico. Na verdade, há poucos argumentos que sustentam fortemente a hipótese de que o homem seja sempre Salomão, a não ser talvez a possibilidade de que o título da mulher em 6:13, “Sulamita”, signifique algo como “Senhora de Salomão”.

A ambiguidade começa já no sobrescrito (1:1)4. A preposição hebraica le (“de”) pode significar que o cântico pertence a Salomão (como na NVI, indicando autoria ou posse). Mas também pode ser uma forma de dedicação a Salomão, talvez indicando que ele foi o encarregado original do Cântico para um de seus casamentos. No entanto, mesmo nesse cenário, a intenção poderia ser que o cântico pudesse ser usado para encorajar o amor puro em qualquer matrimônio.

A passagem em 3:6-11, que descreve uma figura nomeada (Salomão) em terceira pessoa, é considerada única no poema por sua estrutura. Além disso, a alusão ao harém de Salomão em 6:8 e 8:11,12 parece um contraste intencional. A “vinha” de Salomão é entregue a arrendatários (8:11), contrastando com a “vinha” da mulher que é dela própria (8:12).

Essa ambiguidade histórica gerou diferentes leituras do texto. A leitura oferecida nos textos que temos assume um contraste proposital. Essa visão sugere que Cântico dos Cânticos nunca teve a intenção de se aplicar somente a Salomão. Em vez disso, a intenção seria tornar em “rei” e “rainha” todo casal, dado em casamento, que compartilhe o amor puro um pelo outro.

Pense nisto: um rei oriental como Salomão não “convidaria” para o amor; ele o receberia como privilégio de sua posição. Também seria mais difícil imaginar o papel tão preponderante da mulher neste poema se ela fosse apenas mais uma parte de seu vasto harém. Assim, enquanto a associação explícita com Salomão (especialmente no título e em 3:6-11) e a natureza proverbial da conclusão (8:6,7) promoveram sua inclusão na tradição de Sabedoria judaica, o foco principal do poema parece estar no amor mútuo e exclusivo de um casal, algo que transcende a situação específica de Salomão e seu harém.

Portanto, ao ler, não se prenda à ideia de que cada verso descreve a relação de Salomão com uma de suas esposas. Veja o casal no poema como um arquétipo, representando a beleza e a pureza do amor conjugal como Deus o designou.

Entendendo a Estrutura e a Riqueza da Poesia

Como mencionado, a mudança constante de narrador pode tornar a estrutura do Cântico dos Cânticos difícil de discernir à primeira vista. Ele não segue uma ordem narrativa cronológica clara. No entanto, há pistas nas quais você deve se basear para entender a organização das cenas. A principal pista está em alguns refrãos que concluem várias das cenas. O exemplo mais notável é a cobrança feita às filhas de Jerusalém (por exemplo, em 2:7; 3:5; 8:4). Essas frases recorrentes marcam o fim de uma seção ou episódio poético e a transição para outro. Ao identificar esses refrãos, você pode começar a segmentar o poema em unidades menores e mais gerenciáveis.

A beleza do livro reside também na sua poesia em si, que é repleta de ricas e poderosas imagens. Essas imagens são destinadas a evocar a imaginação do leitor. Elas cobrem uma ampla gama de atividades humanas e elementos do mundo. Pense em:

Particularmente marcante é a forma como o corpo da mulher e seu amor são descritos pelo homem. Isso acontece em pelo menos três passagens notáveis (4:1-15; 6:4-7; 7:1-9). Ela é frequentemente vista em termos de um jardim e de uma vinha repletos de temperos preciosos e de vinho. A intenção é clara: apresentar seu corpo e seu amor como uma fonte de prazer e deleite para o homem. O corpo do homem também é descrito, mas de forma menos frequente – apenas uma vez pelo que é registrado nas fontes, pela mulher às filhas de Jerusalém (5:10-16), utilizando toda uma variedade de imagens.

Ao ler, permita que essas imagens falem com sua imaginação. Não as leia de forma puramente literal no sentido de uma descrição anatômica fria, mas como linguagem poética e figurada que expressa a atração, o deleite e a admiração mútua do casal.

A História da Interpretação e a Visão “Sem Vergonha”

A franqueza e a natureza evocativa dessas descrições do amor e do corpo têm sido, historicamente, uma difícil questão para muitos leitores e intérpretes, particularmente homens, tanto judeus quanto cristãos. A nudez e a intimidade descritas pareciam desconfortáveis ou mesmo perigosas.

O resultado normal dessa dificuldade tem sido a alegorização. A alegorização interpreta o texto como tendo um significado simbólico primário, em vez de literal. Historicamente, o Cântico dos Cânticos foi frequentemente interpretado como representando:

Essa tendência alegórica foi tão forte que um concílio da Igreja Primitiva, em 550 d.C., chegou a proibir qualquer interpretação que não fosse alegórica!

No entanto, nossa perspectiva sugere que tal leitura alegórica exclusiva parece ser uma capitulação à decadência humana e ao modo como o amor sexual tem sido frequentemente distorcido para tornar-se explorador, manipulador e destrutivo. A alegorização, neste caso, pode ter sido uma forma de evitar a aparente “indecência” de um texto bíblico que fala tão abertamente sobre o sexo.

Nossa proposta é que este poema deveria ser lido à luz de Gênesis 1 e 2. Esta é talvez a dica mais importante e transformadora para a leitura de Cântico dos Cânticos. Lembre-se do relato da criação:

A imagem do amor sexual neste livro recapitula precisamente essa cena original em Gênesis 2. É um retrato onde a mulher e o homem sentem prazer e deleite completos com o corpo um do outro. E o fazem, crucialmente, sem sentir vergonha.

Esta é a visão divina para o amor sexual dentro do casamento. Cântico dos Cânticos é a maneira inspirada por Deus de recapturar a fidelidade, a unidade e a intimidade do casamento. Ele nos mostra o amor conjugal em sua forma ideal, pura e sem a distorção do pecado. O “inimigo”, Satanás, tem tentado tirar isso do povo de Deus. Como? Fazendo com que coisas fora do casamento pareçam excitantes e desejáveis, enquanto torna o que é puro e bom dentro do casamento algo vergonhoso e inominável.

O autor inspirado do Cântico dos Cânticos tinha uma outra visão. Ele nos apresenta a beleza e a pureza do amor sexual dentro do casamento, celebrando a atração mútua, o desejo, o prazer e a intimidade de forma aberta e sem vergonha, como Deus originalmente planejou no jardim.

Portanto, a dica fundamental é ler Cântico dos Cânticos como uma celebração do amor conjugal humano, puro e santo, à luz da criação em Gênesis 1 e 2. Embora haja ricos significados teológicos que podem ser derivados dessa visão (como a santidade do casamento, a imagem da “uma só carne”, etc.), a interpretação primária não precisa ser uma alegoria forçada.

Dicas Práticas Consolidadas para a Leitura

Com base no que exploramos, aqui estão algumas dicas práticas para você abordar o Cântico dos Cânticos:

Conclusão

Cântico dos Cânticos é um presente de Deus. Ele nos lembra que o amor, em sua expressão mais íntima e vulnerável dentro do casamento, não é algo a ser temido ou envergonhado, mas sim uma dádiva a ser celebrada com deleite mútuo e pureza. Ao ler este livro com a perspectiva de Gênesis 1 e 2, identificando as vozes e apreciando a riqueza de sua poesia, você descobrirá a beleza do desígnio divino para a união entre homem e mulher.

Que a leitura do Cântico dos Cânticos inspire você a refletir sobre a santidade do amor conjugal e a profundidade da intimidade que Deus planejou para o casamento.

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