É comum ouvir a ideia de que, para entender a Bíblia, basta lê-la e fazer o que ela diz. Essa atitude, muitas vezes defendida com grande convicção, parece querer proteger o leigo contra o “especialismo” ou a “interpretação”. Afinal, argumenta-se, se a Bíblia é a Palavra de Deus, ela deveria ser clara para todos. No entanto, as próprias fontes que examinamos sugerem que a realidade é um pouco mais complexa e que a necessidade de interpretar a Bíblia é fundamental.
A ideia de que a Bíblia não precisa ser interpretada implica que ela é um livro de fácil compreensão, acessível a qualquer pessoa sem esforço. Porém, a experiência mostra que muitas coisas que lemos parecem obscuras, difíceis de entender ou mesmo contraditórias à primeira vista. O problema mais sério não é a falta de entendimento das pessoas, mas o fato de que muitas coisas “elas entendem bem demais”. Isto é, elas leem o texto e impõem a ele um significado que já trazem consigo, sem perceber que podem estar distorcendo a intenção original.
A Necessidade Intrínseca da Interpretação
A primeira razão pela qual precisamos aprender a interpretar é que, como leitores, todos já somos intérpretes. Ao lermos, tendemos a presumir que nosso entendimento é o mesmo que a intenção do autor humano ou do Espírito Santo. Invariavelmente, levamos para o texto toda a nossa bagagem: experiências, cultura, e entendimentos prévios de palavras e ideias. Essa bagagem pode, sem que percebamos, desvirtuar ou impor ideias estranhas ao texto.
Além da nossa própria subjetividade, a Bíblia é um conjunto de textos escritos em contextos históricos, culturais e linguísticos muito distantes dos nossos. Ela foi escrita em línguas antigas (hebraico, aramaico, grego) e reflete culturas com costumes, expressões e formas de pensamento diferentes dos nossos. Palavras e conceitos podem ter mudado de significado ao longo dos séculos ou terem nuances diferentes dependendo do contexto. Por exemplo, o significado da palavra “carne” em Romanos 13.14 não é o que entendemos no sentido físico hoje, mas se refere à “natureza pecaminosa” ou “inclinações naturais desordenadas”. A tradução, embora fundamental, é apenas um ponto de partida e já envolve interpretação por parte dos tradutores.
A Bíblia também se apresenta em diversas formas literárias (gêneros), como narrativa histórica, poesia, sabedoria, profecia, evangelhos, cartas, apocalipse, entre outros. Cada gênero tem suas próprias regras de comunicação. Interpretar um provérbio da mesma forma que se interpreta um texto legal ou uma passagem apocalíptica levará a mal-entendidos.
Finalmente, a Bíblia possui uma “natureza dupla”: é a Palavra de Deus, mas nos foi entregue através de palavras humanas, condicionada pelo idioma, pela época e pela cultura em que foi escrita. Essa “tensão” entre a relevância eterna e a particularidade histórica exige interpretação.
O Alvo da Boa Interpretação: O Significado Original
O alvo da boa interpretação não é a originalidade – descobrir algo que ninguém jamais viu. Em vez disso, o objetivo primordial é chegar ao “significado claro” do texto. Isso significa descobrir o que o autor humano, sob a inspiração divina, pretendia comunicar aos seus leitores originais. A interpretação correta consola a mente, enquanto a má interpretação pode irritar ou irritar o coração.Para alcançar esse “significado claro”, distinguimos duas tarefas principais na interpretação bíblica: Exegese e Hermenêutica
1. A Exegese:
Esta é a primeira tarefa e a mais fundamental. A exegese é o estudo cuidadoso e sistemático das Escrituras para descobrir o significado original, o significado pretendido. É essencialmente a tentativa de escutar o autor, descobrindo qual era a intenção original das palavras para os destinatários originais. Fazer exegese é perguntar: “O que disse?”. É um trabalho que exige atenção ao contexto histórico (quem escreveu, para quem, quando, em que circunstâncias culturais e geográficas) e ao contexto literário (as palavras usadas, a gramática, a estrutura das frases e do argumento, o gênero literário). Ferramentas como bons dicionários bíblicos, comentários exegéticos e, se possível, o conhecimento das línguas originais são valiosos nesse processo. A exegese nos ajuda a compreender a Bíblia de forma mais inteligente e a fazer perguntas certas ao texto.
2. A Hermenêutica:
Embora o termo seja usado de diversas formas, no sentido específico relacionado à exegese, a hermenêutica é a tarefa de determinar a relevância contemporânea do texto. Uma vez que descobrimos o significado original (“o que o autor disse?”), perguntamos: “O que isso significa para nós hoje?”. Esta tarefa, aplicar o significado original ao nosso contexto atual, é a hermenêutica. No entanto, é crucial entender que a hermenêutica eficaz depende de uma **exegese sólida**. Não podemos aplicar o texto corretamente se não entendemos o que ele realmente significou originalmente.
Evitando as Armadilhas da Má Interpretação
Muitas interpretações erradas surgem porque os leitores pulam a tarefa da exegese ou deixam que a hermenêutica (a aplicação ao “aqui e agora”) dite o significado original. Eles podem impor suas próprias ideias pré-concebidas ao texto, buscando “significados” que lhes agradam ou que apoiam suas próprias ideias favoritas. Isso pode levar a distorções sérias do texto bíblico, como demonstram as interpretações distorcidas usadas por seitas ou em teologias questionáveis como a da prosperidade.
O significado original do texto é o ponto objetivo de controle da interpretação. É aquilo que Deus realmente pretendeu comunicar pela primeira vez através das palavras humanas. Sem essa âncora na intenção original, a interpretação se torna puramente subjetiva, dependendo da perspectiva ou do desejo do intérprete, e pode levar a resultados errados ou danosos.
Conclusão
Entender a Bíblia vai muito além de uma leitura superficial. Exige humildade para reconhecer nossas próprias limitações e a necessidade de aprender. Requer um compromisso com a tarefa da interpretação, começando pela diligente exegese para descobrir o significado original do texto. Somente então estaremos bem posicionados para aplicar corretamente a verdade eterna da Palavra de Deus às nossas vidas hoje. A jornada da interpretação pode ser desafiadora, mas é essencial para que possamos ouvir verdadeiramente o que Deus nos comunicou através das Escrituras.